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Artigo

 

O lugar de que falo, de que venho e para onde vou

 

Letycia Nascimento*

 

Letycia Nascimento é jornalista formada pela turma de 2014 da UFRRJ, mestra e pesquisadora de Comunicação

Não faz muito tempo Gabriela Bacelar, socióloga e futura mestra em Antropologia pela UFBA, escreveu sobre “os privilégios do colorismo que ninguém te dá” por ter a pele mais clara. Isso me fez refletir inquietações que já me moviam rumo ao desconforto há alguns anos. Ser a jovem negra de pele clara na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ou na Baixada Fluminense, não ocupa exatamente o lugar do racismo às claras. A branca que pegou bastante sol ou a “indiazinha” (mesmo que a existência, ou não, de ancestrais indígenas na minha família fosse desconhecida) sempre foram apelidos que circularam meu entorno durante a infância.

O cabelo cacheado nunca foi uma questão. Que eu me lembre, alisamentos ainda na primeira infância me fizeram conhecer meus cachos para além da maior idade. “Ela tem o nariz do pai, mas parece muito com a mamãe”… tantas percepções de um não- lugar me levaram a muitas formas de demonstrar minha personalidade até sua concretização. E são esses e tantos outros caminhos que me conduziram à quinta turma de Jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no ano de 2014. O lugar da preta de pele clara; da gorda, que nunca foi gorda de fato, preterida entre as amigas; da “burguesa” que não transparecia o “corre diário” dos pais. Não-lugares que sempre me colocaram de frente para os livros e cadernos, como lugar de refúgio, de possibilidades e de aceitação.

Talvez alguns caminhos possam ter se perdido no meio do caminho, mas estar lá, em 2014, no dia 26 de março, com uma camiseta branca, um jeans pra lá de rasgado e Havaianas douradas, foi a exata forma de adentrar as imensas possibilidades que esse não-lugar me levou.

Minhas redomas do não-lugar me levaram a crer que eu sabia de tudo. Tola eu crer que o maior/menor bairro da Zona Oeste do Rio me possibilitaria conhecer a vida, logo eu que jogava bolinha de gude no tapete da sala. A Rural me quebrou por inteira, e feliz sou eu de ter entendido tanto, e saber que ainda nada sei do que me cerca.

Ainda me lembro da primeira aula de Ciências Sociais com a professora doutora Mani Tebet Azevedo Marins, por algum motivo nunca esqueci seu nome todo… Algo sobre Marx ou Durkheim envolvia a aula e fervilhava a mente dos 35 alunos do primeiro período. Não sei se a maneira como as aulas eram apresentadas, ou a magia de uma professora que não parecia tão mais velha do que nós, mas soube ali que queria ir até o doutorado, ou aonde mais os corredores da academia me permitissem ir.

E foram tantos os anseios de pesquisa que me percorreram naqueles quatro anos, ideias que surgiram conforme o meu não-saber mudava. Cobertura fotográfica de conflitos, crise da profissão, comunicação local, sociedade, cultura… No fim, o meu não-lugar me levou a olhar um dos maiores lugares de afirmação nacional, o lugar do indígena, híbrido, completo, atual, não-estereotipado, potente e comunicador.

As experiências de pesquisas e de me envolver em uma amplitude de conhecimentos e possibilidades me possibilitaram ver que o meu não-lugar faz parte da história da miscigenação (só pra ficar mais bonito do que invasão, estupro, sequestro e genocídio), é o lugar da resistência e nos concede um lugar!

O lugar das margens da cidade, o lugar da periferia, na raiz da palavra, traz de volta o entendimento de que o não-lugar é por si só um lugar, cheio de possibilidades. Foi para esse lugar que o ensino, a pesquisa e a extensão da Universidade pública e gratuita me conduziram, um lugar de histórias tão profundas como as dos livros que me envolveram a infância.

“O colorismo e o privilégio que ninguém te dá”, de Gabriela, me reconectou às aulas de Flora Daemon e suas imensas conexões entre a comunicação, a cidadania, e a relação de responsabilidade social com a comunicação social. Mas não só com as conexões de Flora, a frase de Gabriela Bacelar me rememorou a Luena Nascimento, antropóloga e professora associada da UFRRJ. “Não é privilégio se for um direito!”: uma frase simples, mas que causou tanta polêmica entre alunos militantes do movimento negro e observadores, nos conduz à reflexão de que “sim”, privilégios são, muitas vezes, direitos que devem ser concedidos a todos nós.

O direito de pesquisar, de aprender, de vivenciar, de descobrir, redescobrir e transformar os saberes são apenas algumas das possibilidades dadas a um jovem na Universidade Pública. E, definitivamente, as possibilidades de compartilhar essas experiências ao olhar a sociedade com olhos de quem se forma jornalista na Baixada Fluminense, com todas as suas especificidades, nos coloca nesse lugar de reflexão profunda para com a sociedade.

É esse berço da Baixada, o Sul Global das montanhas do Rio de Janeiro, que forma, com imensa maestria, tantos profissionais capazes e tão plurais e memoráveis, como os nascer e pôr-do-sol que embalam a vida ruralina, e dos quais, com certeza, todos sentimos saudades.

Concluo afirmando, com toda a potência, que aprendi com mestres e amigos, ou professores, se assim você preferir chamar, do curso de Jornalismo da UFRRJ. A educação, a ciência, o desenvolvimento e a qualidade de ensino não são um privilégio, mas um direito concedido pela pertença do nosso lugar enquanto agentes sociais!

 

*Letycia Nascimento é jornalista formada pela turma de 2014 da UFRRJ, mestre em Mídia e Cotidiano pela UFF e pesquisadora na área de comunicação cidadã, etnocomunicação indígena e sociedade.

Postado em 23/10/2020 - 14:11 - Atualizado em 16/11/2020 - 22:09